Vocês são um casal ou dois estranhos se relacionando?

Qual será o motivo que levam muitos casais a se relacionarem como 2 estranhos dentro de uma casa?
Sabemos que é muito natural o sentimento oscilar durante a vida conjugal. Da paixão a amizade, muitos casais experimentam diferentes sentimentos em relação ao cônjuge e de forma cíclica. Mas como fazer quando o relacionamento não consegue sair do momento crise ou “em baixa”? O trabalho de transformar o sentimento ao longo da convivência exige esforço, vontade e dedicação de ambas as partes. Ambos precisam estar dispostos a alimentarem o relacionamento.
Se já é trabalhoso quando se está disposto, imagina quando o casal passa a se relacionar como rivais, como se precisasse ter a vitória de um dos lados. O outro tem que ser sempre o seu parceiro, não o seu rival. Casamento não é competição, não é preciso mostrar força ou poder de um dos lados, até porque como já discutimos em outro texto, onde há o poder não cabe o amor.
Percebemos que ao longo do relacionamento, os casais vão ficando cada vez mais inconscientes de si próprios. Não existe mais o Eu e o Ele(a), mas sim pessoas que vão se tornando cada vez mais semelhantes, como se fossem misturados pela convivência. Ao se tornar iguais, é comum que em determinado momento a parceira comece a cobrar do outro que sinta, viva, pense e aja exatamente como ela; o que acontece é que se imagina que ambos se tornam uma única pessoa e que quando um deles não compreende ou sente diferente, é como se estivesse sentindo menos, ou sentindo errado. Jung fala que:
“A inconsciência produz a indiferenciação, a identidade inconsciente. A consequência prática é que um pressupõe que o outro tenha uma estrutura psicológica semelhante”. (GW 17 §330)
E na real, não somos iguais. E neste momento de ‘choque’ onde se começa a buscar uma diferenciação – quem sou eu, quem é esta pessoa que estou casado – é o verdadeiro pulo do gato. É nesta hora que cada um pode trabalhar para se conhecer e permitir que o outro também se expresse do jeito dele e que o amor venha com a admiração deste outro, tão diferente e tão complementar a você. É aí que está o equilíbrio. Porém, como acontece em muitos casos, este momento gera insegurança pois uma nova pessoa passa a existir e conviver ao seu lado; e esta pessoa não é você e também não é aquela que você idealizou. Ou seja, não se tem controle. Não se pode manipular.
A busca pelo Eu, uma identidade no relacionamento, é inevitável para os casais. Em algum momento, um dos cônjuges vai pedir socorro para resgatar a sua individualidade, tão necessária para um relacionamento. Não se esqueçam de para existir um nós, é preciso existir um eu + ele. O problema acontece quando este resgate não é encarado psiquicamente, com atenção e consciência e o casal passa a brigar, com troca de ofensas e acusações como se o outro fosse o responsável pelo desequilíbrio total da relação. Sobre este assunto, Jung faz uma citação curiosa:
“Uma harmonia familiar muito boa, que se baseia na participação, logo produz as mais intensas tentativas por parte do cônjuge de se libertar e romper com o outro. Então eles inventam os mais irritantes temas de discussão, só para terem um motivo de se sentirem incompreendidos. Se você resolver estudar a psicologia mediana do casamento, então vai descobrir que a maior parte das dificuldades reside nessa invenção habilidosa de temas irritantes, que absolutamente não possuem nenhum fundamento”. (GW 18/1 §158)
Interessante pensar que as brigas constantes e sem motivos são tentativas dessa diferenciação, desta busca pelo outro e por mim. Que ao brigar, eu tento me libertar desse emaranhado de personas, de coisas e jeitos que eu não quero mais fazer pois não faz parte de mim. O mais interessante ainda é pensar que o melhor jeito disso acontecer é na psique, nas emoções e não literalmente em uma briga com o parceiro. Na briga somos tomados por nossos complexos e acabamos falando de forma dura e cruel com o outro; e essas marcas ficam vivas no inconsciente deste casal, mesmo que racionalmente eles queiram afirmar que são bobeiras e que já esqueceram.
Agora, será possível escutar o que estamos falando, o que estamos pedindo para o parceiro? Conseguimos entender que essas queixas e mudanças eu também possuo e tenho que mudar em mim? Que de certa forma eu também sou responsável pelo desequilíbrio uma vez que sou co-autor deste relacionamento?
Por isso que se relacionar é um ato de coragem e humildade. É preciso humildade para olhar, se responsabilizar, voltar a trás, pedir desculpas, perdoar, entender o ponto do outro, ajudar e ceder quando algo não pode ser mudado. E só dá certo quando os dois estão dispostos a terem a mesma conduta. Porque achar que eu sou a salvação do relacionamento é tão patológico quanto achar que só o outro é o problema. Não se ama sozinho; não se constrói um relacionamento sozinho. É preciso compartilhar e ter a ajuda do outro, diariamente.

Mas lembrem-se: precisa de mim e do outro. Duas pessoas inteiras e com suas individualidades buscando doar o que se tem de melhor e receber o melhor que o outro pode doar.  Quando isso fica claro, é mais fácil compreender que muitas vezes o outro não vai ser perfeito, mas é possível amá-lo e respeitá-lo por ele ser quem é. A harmonia volta, a cumplicidade ressurge, o amor se transforma e aqueles dois estranhos passam a dar lugar a dois companheiros, que juntos, podem escrever uma história mais bela e completa do que se escrevessem sozinhos. 
Marcella Helena Ferreira
Psicoterapeuta Junguiana
marcella@conhecendojung.com.br

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